hemos compilado un manual de los extraños entes que ha
engendrado, a lo largo del tiempo y espacio, la fantasía de los hombres”
No Livro dos Seres Imaginários, Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero recria monstros híbridos, criaturas fantásticas, animais fabulosos e seres mitológicos, a partir de uma compilação de figuras da literatura, da mitologia clássica e das culturas chinesa e islâmica. A obra segue o enunciado dos bestiários medievais nos quais as descrições dos animais se fazem a partir de especulações abstratas, reflexo do pensamento medieval que operava por aproximações simbólicas entre o mundo real e o transcendente.
No bestiário criado por Borges e Guerrero, germinam, entrelaçam-se e multiplicam-se criaturas: monstros compostos por partes de diferentes animais, seres lendários, figuras mitológicas e personagens nascidos tanto de tradições antigas quanto da própria imaginação do autor. Há também referências a animais da mitologia chinesa e a seres com características humanas. Trata-se de um compêndio não linear e não codificado de criaturas que atravessam culturas, épocas e mundos, tanto reais como inventados, reunidas num único universo literário. O livro constitui um tipo de bestiário fantástico de ideias abstratas, símbolos e interpretações alegóricas, resultando numa multiplicidade de descontinuidades, efabulações, fragmentos e associações ilógicas, não taxonómicas.
Esta obra desafiou os sistemas de catalogação das ciências humanas, o que levou Michel Foucault a mostrar, em As Palavras e as Coisas, como o saber se organiza por rupturas e reorganizações. O resultado é uma experiência em que memória e temporalidade aparecem não como linha reta, mas como campo aberto, cheio de camadas e possibilidades de leitura. Não seguindo um entendimento objectivo e racional da memória e do tempo, mas actuando nessa soma de tangentes à ficção e à efabulação, o Livro dos Seres Imaginários mostra como somos o resultado das nossas memórias que moldam a identidade, e por isso somos narrativas de nós próprios.1
Nesta primeira exposição de Carla Cabanas na Casa-Museu Bissaya Barreto, a artista apresenta trabalhos da série Seres Imaginários através de quatro núcleos distintos: Ouro, Tenda, Grade e O Bestiário inspirados diretamente na obra de Borges e Guerrero hibridizando a ficção e a imaginação com a realidade a partir de fotografias do álbum familiar da artista.
Na série Ouro, a utilização da folha de ouro aplicada sobre fotografias, desenhando diretamente sobre as imagens, marca fronteiras entre o real e o imaginado, entre aquilo que lembramos e aquilo que esquecemos. A intervenção visual inspira-se na técnica japonesa do kintsugi, método ancestral de restauro de cerâmica no qual as peças partidas são coladas com uma laca natural chamada urushi e, depois, cobertas com pó de ouro. Nesse processo, as falhas não são ocultadas, mas realçadas, tornando-se parte estrutural da peça realçando como a imperfeição e a passagem do tempo ganham corpo e valor simbólico.
Na série Tenda, as fotografias transformam-se em corpos e criaturas que habitam o espaço tridimensional. O recurso a um material carregado de simbolismo e memória pessoal, ou seja as varas de uma antiga tenda de campismo, serve de estrutura para sustentar o papel fotográfico. As esculturas fotográficas foram pensadas para introduzir restrições no ato de ver, remetendo à forma como nossas memórias também se apresentam: incompletas, manipuladas, fragmentadas pelo tempo. São imagens que se dobram, amassam-se e tornam-se difíceis de ver com nitidez.
A série Grade é composta por grelhas metálicas enferrujadas que cobrem grandes impressões fotográficas, sugerindo um espaço em ruínas, como uma casa abandonada. A presença das grades cria um efeito de aprisionamento e contenção, funcionando como metáfora visual para os processos da memória, alternando entre esquecimento e recordação seletiva.
Goofus Bird é uma escultura inspirada diretamente no pássaro descrito por Borges e Guerrero que se metamorfoseia com a imagem da artista para criar uma uma alegoria à forma como o passado molda quem somos no presente. A frase usada no livro para caracterizar esta criatura: “E não esqueçamos o Goofus Bird, pássaro que constrói o ninho ao contrário e voa para trás, porque não lhe importa para onde vai, mas sim onde esteve” 2 convida o espectador a refletir sobre a natureza do tempo e da memória, desafiando a ideia de que a vida se desenrola de forma linear. Como o Goofus Bird, somos muitas vezes guiados pelo que foi, mais do que pelo que virá.
Na última parte da série, O Bestiário, mantêm-se o uso das fotografias de família, da folha de ouro e dos elementos simbólicos presentes nas séries anteriores. Aqui, no entanto, cada peça é inspirada diretamente em criaturas do Livro dos Seres Imaginários. Cada escultura nasce da intersecção entre a história da criatura e a história pessoal da artista, resultando em formas únicas, híbridas, onde memória, fantasia e autobiografia se fundem.
A proposta da exposição Seres Imaginários de Carla Cabanas é a de entender as imagens mentais da memória não como arquivo estático, mas como processo em constante atualização. O que recordamos já não é idêntico ao passado vivido: é sempre transformado e reconfigurado no presente, contaminado pela percepção e pela imaginação, sobrepondo-se muitas vezes à realidade objetiva.
1 Henri BERGSON, Matéria e Memória. Martins Fontes: São Paulo, 1999
2 Jorge Luis BORGES, Margarita GUERRERO, O Livro dos Seres Imaginários. Quetzal Editores, Lisboa, 2021, pág. 102
Casa Museu Bissaya Barreto
R. Infantaria 23, Coimbra