"A recoleção compulsiva de imagens, estáticas ou em movimento, acompanha este autor como modus operandi vital num fluxo criativo que se desdobra em séries longas e em muitos casos numa abertura à continuidade que indicia um constante cuidado com a diferença na repetição, para parafrasear os filósofos."
A imagem necessária
“Certos espíritos amantes do mistério pretendem que os objectos conservam qualquer coisa dos olhos que os viram, que os monumentos e os quadros só nos aparecem sob o véu sensível que lhes foi tecido pelo amor e pela contemplação de tantos adoradores, ao longo de muitos séculos. Esta quimera seria verdadeira se a transpusessem para o domínio da realidade exclusiva de cada um, para o domínio da sua sensibilidade própria. Sim, nesse sentido, e apenas nesse sentido (mas que é muito maior), uma coisa que em tempo observámos, se tornarmos a vê-la, traz-nos, juntamente com o olhar que nela poisámos, todas as imagens que então o enchiam. É que as coisas – um livro como outro qualquer sob a sua capa vermelha -, logo que vistas por nós, tornam-se em nós algo de imaterial, da mesma natureza de todas as nossas preocupações ou das nossas sensações desse tempo, e misturam-se indissoluvelmente com elas.” Marcel Proust
"Em todo o caso... raio de pergunta: porque filmo? Ora, porque... alguma coisa acontece, vemo-la acontecer, filmamo-la enquanto acontece, a câmara observa, conserva-a, podemos contemplá-la repetidamente, contemplá-la mais uma vez. A coisa já não está lá, mas a contemplação é possível; a verdade da existência desta coisa, essa, não se perdeu. [...] A progressiva destruição da percepção exterior e do mundo é, por um instante, suspensa. A câmara é uma arma contra a miséria das coisas, nomeadamente contra o seu desaparecimento."Wim Wenders
Noé Sendas resgata da realidade a impermanência para lhe garantir o mistério. A recoleção compulsiva de imagens, estáticas ou em movimento, acompanha este autor como modus operandi vital num fluxo criativo que se desdobra em séries longas e em muitos casos numa abertura à continuidade que indicia um constante cuidado com a diferença na repetição, para parafrasear os filósofos.
Na instalação central da mostra, intitulada Caffe Sospeso de 2021, um conjunto de quatro esculturas são cenograficamente iluminadas por quatro projetores de diapositivos com um slide em branco. Uma cadeira, uma calças e uns sapatos, repetem-se em configurações diferenciadas. Mais do que uma representação, trata-se aqui de uma presença. Uma presença absolutamente fantasmática, que não se cola ao real, antes tornando visível os resquícios de memórias. A observação, por exemplo, do bulício de um café tradicional enquanto criança – o que coloca o nível do olhar precisamente neste plano em que as pernas e as cadeiras ganham a primazia da perspetiva. Ou a lembrança de frase “caffe sopeso” anunciada com o típico fervor italiano, quando se anunciava que um cliente, para além do seu consumo próprio, oferecia um café a quem o viesse reclamar. Pequeno gesto de solidariedade de uma convivialidade intracomunitária que se está a perder inexoravelmente. O desaparecimento desses gestos, desses espaços físicos, ressoa nesta instalação como uma banda sonora inaudível, mas pressentida. Daí que a ausência seja aqui tão importante quanto a presença: na verdade, as sombras que são atiradas para as paredes da galeria são monumentos de memória, são o fantasmático visualmente tangível.
Nas duas séries que completam a exposição, Vertical Seas e Bindings, Noé Sendas reincide na edição de uma imagética apropriada. Nestes trabalhos sentimos que o artista se equipara à figura daquele poeta que não consegue largar o poema e, para desespero do seu editor, o reescreve permanentemente.
Vertical Seas desenvolve-se a partir da justaposição de dois postais e duas folhas como pano de fundo. São várias camadas que se sobrepõem numa alusão clara ao conceito de antiguidade: clássica, enquanto denominador civilizacional, mas também antiguidade de uso, isto é, no caráter inatual dos postais resgatados, para além da marcas mais ou menos recentes do tempo que se detetam nos papéis. As composições são cuidadosamente determinadas evitando um padrão estático, antes apontando para linhas de força que parecem emanar das próprias imagens. Sem indicação precisa, apreendemos uma linha condutora que se fixa na dualidade do peso e estatismo ataráxico da escultura clássica justapostos ao sublime e infinidade de mares mais ou menos convulsos. Esta transtemporalidade desenha-se como a impossibilidade de um presente, sem que nele se inclua fatalmente o passado e o futuro.
Neste recorrente processo de edição e montagem, a série Bindings detém um lugar muito particular. Nela, o artista delineou um meticuloso plano de ação que passava por adquirir e receber por correio num período relativamente alargado cópias de um mesmo livro: Les Merveilles de L’Art Antique, de Georges Daux, publicado em 1946, isto é, no imediato pós-Segunda Guerra Mundial. A beleza das ruínas de civilizações matriciais em contraste com as ruínas tenebrosas de uma civilização inominável.
A partir de páginas desse livro o artista cria um dispositivo que repete a justaposição de imagens, mas expandindo neste caso a composição para estruturas tridimensionais que se tornam, enquanto suporte, esculturas de uma precariedade assumida. No fundo trata-se de sublinhar a impermanência potencial destas combinações, como se viesse a ser possível e desejável uma desmontagem posterior que devolvesse outro passado às imagens.
Não creio estar demasiado longe das reverberações poéticas que emanam destas obras ao supor que aquilo que Noé Sendas problematiza, em ciclos formalmente diferenciados, é concetualmente uno: a memória enquanto catalisadora de um posicionamento perante o mundo. E, no seu caso, esse seu posicionamento é o de interrogar criticamente o lastro das imagens que criam memórias. É, então, um poderoso antídoto para a crescente digitalização anestesiante do mundo, onde à velocidade do esquecimento se opõe a persistência da rememoração.
Miguel von Hafe Pérez






