Curadoria de Luísa Santos
Apropriando-se, em parte, do título da obra de Jorge Luis Borges, O livro dos seres imaginários, publicado em 1957, sob o título original Manual de Zoologia Fantástica, e expandido em 1967 e 1969, com a colaboração de Margarita Guerrero, Seres imaginários, de Carla Cabanas (1979, Lisboa), é uma exposição-instalação que abre as portas, por um lado, ao mundo privado das memórias da artista e, por outro lado, a um espaço especulativo do que poderiam ser (as construções d)essas memórias.
Dando continuação às suas investigações sobre os lugares da(s) memória(s) e das imagens fotográficas, em particular dos álbuns de família que encontra ou adquire, na construção das narrativas de identidade, em Seres imaginários, Carla Cabanas usa exclusivamente e, pela primeira vez, fotografias suas e da sua família. No seguimento das metodologias que usou anteriormente, como em I don’t trust myself when I’m sleeping (2018-19) e em I don’t trust myself when I’m sleeping II (2020), uma série conceptualizada num período de residência artística em Berlim, a artista intervém nas imagens fotográficas escondendo partes e acrescentando outras para criar novas personagens e sentidos.
Quando entramos na Galeria, somos recebidos por uma fotografia de pequenas dimensões – tal como num álbum de família - na qual podemos ver (ou adivinhar) quatro pessoas que, com a intervenção da artista, com a técnica Kintsugi, compõem um ser dourado com quatro cabeças. Na técnica Japonesa de restauro de cerâmica, juntam-se partes partidas de uma mesma peça com verniz natural Urushi e cobrem-se com ouro as fissuras resultantes da colagem para evidenciar as fissuras e assim valorizar as falhas e as alterações físicas dos objetos, causadas pelo tempo ou por acidentes. Nas imagens de Carla Cabanas, juntam-se elementos para criar personagens, seres e histórias. Neste caso específico, de uma imagem de uma avó, uma mãe e dois filhos / netos, somos transportados para a ideia Lacaniana de estádio do espelho, fase a partir da qual (por volta dos seis meses de idade), a relação com a mãe se modifica, bem como toda a realidade externa. A mãe passa a ser compreendida como um ser distinto, separado de si, independente e fonte de experiências boas e más. Na imagem, mãe(s) e filhos são – novamente - um só, unidos por fissuras e marcas que servem de metáfora visual para a passagem do tempo e para as memórias (re)construídas.
Na sala lateral da Galeria, três grades metálicas enferrujadas, com uma presença reminiscente de ruínas de uma casa, sobrepõem-se a impressões fotográficas de grandes dimensões que parecem corpos enclausurados a tentar fugir entre as frestas. O efeito quase cénico de Seres imaginários, semelhante ao que experienciamos perante obras como The Prompter (1988), de Juan Muñoz, com um palco ocupado apenas por uma caixa na qual se esconderia uma pessoa cuja função seria a de dizer falas que os atores tivessem esquecido criando um espaço que fica preenchido só na imaginação do público, é problematizado pela artista ao oferecer uma relação de ambiguidade entre o espectador e a cena que cria. Afinal, em primeira instância, estamos excluídos das memórias que vemos ao longo das salas da Galeria.
Na sala principal da Galeria, encontramos mais fotografias de pequenas dimensões da mesma série e um conjunto de quatro esculturas: estruturas metálicas, douradas, sobre as quais estão colocadas imagens fotográficas de grandes dimensões. Se nas fotografias de pequenas dimensões os elementos dourados são unificadores, nas fotografias-esculturas, estes elementos - os prumos dourados - adquirem uma dimensão estrutural, de suporte. Quando entramos na sala, a sensação é a de estarmos perante quatro espaços – tal como a tenda original à qual pertencem estes prumos, com três quartos e uma sala - aos quais temos acesso limitado. As fotografias que descansam sobre as estruturas, como as memórias que (acreditamos que) temos, foram manipuladas, dobradas, e vincadas. Através da manipulação do papel fotográfico, Carla Cabanas concentra-se no lado corpóreo das imagens, nos fragmentos dos corpos. O papel é tratado como uma pele, uma superfície sensível que regista as marcas do tempo do mesmo modo que a emulsão fotográfica regista a imagem. Por outras palavras, tal como na técnica Kintsugi, a passagem do tempo é evidenciada e elevada a um lugar de construção com um espaço e um corpo próprios.
N’ O livro dos seres imaginários, de Jorge Luis Borges, uma espécie de bestiário moderno, lemos a descrição de uma grande parte de seres estranhos construídos pela imaginação humana. Uma mistura de referências muito diversas, cada uma das criaturas resulta dos sonhos, desejos e medos da humanidade, bem como as que foram criadas por autores como Franz Kafka, Lewis Carroll, ou Gustave Flaubert. Na exposição-instalação de Carla Cabanas, a manipulação física das fotografias – com as incisões, com o ouro, com as dobras e os vincos – serve para mostrar os abismais espaços que separam uma suposta realidade objetiva da sua representação através de memórias e das imagens que construímos dessas memórias. Seres imaginários não é apenas uma reunião cuidadosa de memórias criadas pela imaginação. A exposição-instalação mostra o quanto a imaginação pode ir longe, como pode sobrepor-se aos factos e criar entidades e lugares novos que trazem um conhecimento único, com o qual jamais nos poderíamos deparar na realidade como (acreditamos que) a conhecemos.
E é precisamente neste lugar entre memória (as fotografias), construção (a técnica Kintsugi), e trauma (as dobras, os vincos) que Seres imaginários emerge para criar narrativas e procurar novas interpretações daquilo que é aceite como história. A um primeiro olhar, tratam-se de novas narrativas da história da família de Carla Cabanas e, como histórias pessoais que são, temos acesso limitado às mesmas. Contudo, ao oferecer-nos imagens de um álbum de família que, pela sua normalidade – ou humanidade - , poderia ser o nosso, a exposição-instalação perpassa o domínio das memórias individuais e intransmissíveis para o lugar das memórias colectivas e partilhadas. Em ambos os casos, parece ser tarefa quase impossível dizer o que é real e o que é ficcional.
Imagens © Bruno Lopes













