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Exposição individual comissariada por João Silvério

como fazer, a natureza

 

O conjunto de obras que Catarina Leitão nos propõe nesta exposição pode entender-se como um ensaio visual sobre diversos modos de interrogar uma ideia de natureza sujeita a diversos processos de domesticação e de transformação. O título da exposição, “Naturfatura”, expande-se por todas as obras indexadas em séries, anunciando um processo de trabalho sequenciado e, aparentemente, linear. Contudo, não é exactamente assim: o trabalho é desenvolvido como uma simbiose, próxima de uma analogia de matriz biológica, em que o desenho contribui para o processo escultórico e a sua acção recíproca é perfeitamente apreensível no corpo de trabalho que nos interpela no espaço. A artista tem desenvolvido o seu processo com particular incidência sobre a escultura e o desenho, dando uma importância equivalente aos livros de artista, que incluem os “cadernos”, ou os “cadernos de campo” que, de um modo muito subtil mas eficaz, agregam na experiência do ateliê uma biblioteca auto-portante, mais precisamente uma “Biblioteca Natural” onde se cruzam a escultura e o desenho, a observação e a ficção. Mas se todas estas acções são desenvolvidas em simultâneo, o que parece contrariar a anteriormente referida serialidade inscrita na designação das suas obras, a exposição conduz-nos a uma métrica que define no espaço expositivo uma construção narrativa entre o arquivo de registos analíticos e orgânicos e a fabulação de construções que parecem transgredir a noção, talvez perdida, de uma natureza arquetípica."

As esculturas são como modelos híbridos de dispositivos de protecção hortícola que, simultaneamente, aparentam ser expositores de taxidermias naturais, imbuídas de uma plasticidade marcada por uma paleta cromática muito austera. Os materiais usados são a madeira, trabalhada a partir de ramos recolhidos e aparados de forma proficiente que se confundem com modelações artificiais e estabelecem uma relação de continuidade formal com os seus prolongamentos em vinil, como apêndices que expressam a dualidade da experiência humana sobre a natureza. Um detalhe, presente em cada uma das esculturas, é visível numa observação mais atenta. Cada elemento de ligação é separado por um pequeníssimo espaço que parece denunciar um acabamento impreciso, por finalizar. Mas não é exactamente assim: esse hiato, ou intervalo, é uma marcação que define a reconfiguração, na escultura, desses fragmentos de índice vegetal como uma unidade entre o orgânico e o artificial, numa dialéctica da dupla natureza da acção humana, entre o deleite quase romântico da observação e a transição mecânica e industrial dessa mesma acção. Neste sentido, as esculturas presentificam uma postura crítica, e assim política, da obra de Catarina Leitão que decorre de um trabalho aturado de investigação, estribado na sua recente tese de doutoramento, que desenvolveu nos últimos anos, e que resultou num corpus de investigação especulativo sob o título “Weatherproof - Incursões no Pós-Natural a Partir da Minha Prática Artística”. Transcrevo aqui uma breve passagem que no meu entender, nesta forma resumida, se constitui como um enunciado das suas reflexões: “As questões relativas à ideia de natureza podem ser encontradas numa multiplicidade de contextos e abordagens. Na vida quotidiana, a natureza é alvo de grande confusão, por vezes, é a expressão de uma voz autoritária, outras um fenómeno para contemplar, ou ainda a fantasia de um lugar recuado no tempo ao qual é suposto querermos regressar.

Neste contexto, os desenhos Naturfatura, de assinalável dimensão e correspondentes à escala e proporção das esculturas, executados com uma precisão cirúrgica, reiniciam-nos no itinerário da biblioteca, onde percorremos imagens desenhadas de fragmentos estratigráficos, de orografias imaginadas, de padrões de matriz arquitectónica (ou doméstica), de modelos de ramos arbóreos, e de uma espécie de panorama remissivo da construção ficcional sobre um universo que nos parece próximo. Os desenhos, painéis imensos de uma memorabilia distante, são como uma estante complexa de aforismos visuais que nos propõem uma visão panorâmica entre o rudimento e a expansão mecânica do humano.

 

João Silvério

Apontamentos-Naturfatura #02, 2023
aguarela, acrílico e corte s/ papel, 110 x 151 cm
Apontamentos-Naturfatura #05, 2023
aguarela, acrílico e corte s/ papel, 110 x 151 cm
Apontamentos-Naturfatura #06, 2023
aguarela, acrílico e corte s/ papel, 110 x 151 cm
Apontamentos-Naturfatura A01, 2023
aguarela e acrílico s/ papel, 28 x 39 cm
Apontamentos-Naturfatura A02, 2023
aguarela, acrílico e corte s/ papel, 28 x 39 cm
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