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Tatiana Macedo trabalha com filme, vídeo, fotografia e som, nas suas formas expandidas, numa abordagem interdisciplinar que penetra profundamente em contextos específicos, documentando, ficcionando e discursivamente transformando-os, através da edição e da montagem, de forma crítica, sensível e ensaística.

Em exposição individual pela segunda vez na galeria, a artista, de ascendência Portuguesa e Angolana, apresenta um conjunto de obras em que retrabalha um álbum fotográfico privado pertencente à sua tia Isabel (Bela). Mas ao contrário de um álbum amador, estes são retratos de Bela, tirados por um amigo - um fotógrafo profissional Angolano - em Luanda, nos anos de 1973 e 1974. Na instalação, que transforma a presença das imagens numa experiência escultórica, Tatiana Macedo retrabalha digitalizações das imagens do álbum, já gastas pelo tempo, e a partir delas imprime, ela mesma, em várias escalas e depois de minuciosamente apagar todas as marcas de deterioração das impressões originais. Sem qualquer tipo de nostalgia ‘apaga’ o intervalo temporal entre a captura da imagem e a sua impressão, como que continuando o trabalho do seu autor, falecido pouco tempo depois, em 1975. Apresentado pela primeira vez em 2016 em Berlim e sob o título Bela. este sempre foi, para a artista, um corpo de trabalho que ‘pensa’ com a migração dos elementos que o constituem, sendo fundamental este seu segundo momento de apresentação em Lisboa. Em Berlim, a artista juntou à instalação fotográfica um elemento da cultura material de consumo alemã – a Afri-Cola – uma bebida criada e registada em Colónia em 1931, que teve o seu boom comercial no pós-Guerra. Esta referência adquire um tom irónico quando pensamos nos filmes publicitários de culto desta bebida, nomeadamente nas décadas de finais de 60 e inícios de 1970, realizados por Charles Wilp. Estes filmes exploravam o cliché exótico da palmeira e da imagem de África associada à emancipação do corpo da mulher e do homem, à liberdade sexual num estilo provocativo, avant-garde, pop e futurista que enaltece a celebração e a festa inebriada (dado o alto teor de cafeína da bebida). A sua irreverência é incorporada no slogan:

“und alles wird afri”, “e tudo se torna afri”. Mais tarde Wim Wenders realiza também um spot comercial para a Afri-Cola. Os elementos aparentemente díspares que compõe este projecto, migram nas suas múltiplas direções contextuais, históricas e culturais, entre Angola, Portugal e Alemanha.

Neste segundo momento de apresentação em Lisboa, as imagens (algumas inéditas), regressam a um contexto que lhes é mais sensível, ao contrário da Afri-Cola que migra para um contexto que lhe é alheio. Para o público de Lisboa que desconheça a origem da bebida alemã, Afri-Cola poderá ser entendida como uma bebida Africana, com tudo o que isso possa representar na memória e na vida de cada um. Qual o papel do texto que acompanha este projecto? Como legendá-lo? Estas são questões que têm ocupado os debates de várias instituições europeias e não só, com coleções etnológicas  constituídas por artefactos que migraram de cultura, e que hoje cada vez mais se debatem com o problema da narrativa que lhes é subjacente e/ou acrescentada. Que histórias contam esses objectos? Não bastará contar a história do seu uso, da sua origem geográfica, étnica, histórica, assim como não será suficiente contar somente a história do seu roubo, tráfico e colonização. Clementine Deliss diz que estes objectos ‘estão contaminados’. Penso que em parte as pequenas narrativas pessoais e as suas biografias são aqui fundamentais – quem os fabricou, quem os colecionou, quem os traficou, que viagens fizeram? Pensando a partir dos movimentos migratórios e das deslocações de todos estes intervenientes. Mas nada existe fora de contexto. O nosso entendimento das coisas dependerá sempre da forma como nos posicionamos, de uma capacidade de exercitar o corpo e o pensamento fora desses limites, assumindo vários ângulos e pontos de vista que nos permitam questionar o que temos diante de nós , em cima, em baixo, atrás, ao lado, hoje, ontem, num ambicionado futuro.

Nas palavras de David Campany,

Photographs are highly mobile images. Made at particular times, often for particular reasons they can reappear in other circumstances. Some of the most well known photos have had long lives and numerous manifestations – in magazines and books, on gallery walls, postcards and posters. Many are essentially simple, their meaning able to withstand the vagaries of cultural transit. Others are more pliable, yielding to different demands, shifting in meaning, lending themselves to different ends. Some become well known through a single, highly visible use (on television or on the cover of a newspaper). Others accrue their meaning over time.

Uma coisa é certa para mim: estes são retratos de alguém apaixonado pelo que tem diante de si: sujeito e paisagem. Alguém que no intervalo da sua profissão exerce a sua liberdade artística, no encalço dos seus mestres - como presumo ser o caso de uma das fotografias de Bela com a sua amiga, à janela da carcaça abandonada de um autocarro onde se lê “Autocarro do Amor”, mas que me remete para o icónico retrato da desigualdade racial nos EUA, de Robert Frank, em The Americans (França, 1958). Um outro filme vem-me à memória: La Pyramide Humaine de Jean Rouch (Costa do Marfim, 1959) – um audaz exercício entre a ficção e a não ficção, o amor, a adolescência e uma Abidjan colonizada por Franceses a viverem já a sua Nouvelle VagueO autor destas imagens expõe tanto a sua fragilidade quanto a do território que é pisado por ambos. Qualquer leitura de uma relação predador/presa é limitada quando falamos de um retrato. E a nossa posição como espectadores está também ela repleta de fragilidades. Na instalação vídeo/escultura que integra a exposição, tudo é imagem e tudo é paisagem, num movimento de travelling infinito sobre o ‘palmeiral’.  Dou por mim a ironizar, mais uma vez, a experiência exótica na arte contemporânea - uma veneração temporária vazia de conhecimento, uma produção de objectos de exibição que perpetua com o mesmo exotismo aquilo que pretende criticar. Mas Bela faz parte da minha biografia e Afri-Cola é uma droga politicamente incorrecta, ambas objecto e imagem, permeáveis à fragilidade dos seus espectadores – as nossas fragilidades.

Este texto foi escrito por Tatiana Macedo, na primeira e na terceira pessoa. 

Com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian no contexto da Bolsa João Hogan de Residência Artística na Künstlerhaus Bethanien, Berlim, 2016

Lisboa, Abril de 2019
Tatiana Macedo

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1 “The Dialogue Between you and these Disparate Elements – A conversation with Tatiana Macedo about exoticism, exhibition making and the ontology of things” é o título de uma conversa entre a artista e Emanuele Guidi, publicada a respeito desta exposição no livro “What is Unspoken” – um conjunto de ensaios a respeito da obra de Tatiana Macedo editado pela Kunstlerhaus Bethanien, Berlim, 2016.

2 Curadora e Investigadora em Filosofia e Antropologia Social.

3 David Campany em The Career of a Photographer, the Career of a Photograph – Bill Brandt’s Art of the Document, publicado pela primeira vez no catálogo da exposição Making History: Art and Documentary in Britain from 1929-Now, Tate Liverpool , 2006

 

PRESS: RTP - Horas Extraordinárias | Público |  Visão

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